segunda-feira, 27 de setembro de 2010

martha medeiros

Tarde demais, nascemos
Uma vez nascidos, temos uma cara, um corpo e a nossa alma. Tentem, mas vai ser difícil nos transformar em pedra, parede, concreto

Devoro tudo o que o americano Philip Roth escreve e não foi diferente com seu mais recente lançamento, O Animal Agonizante, que é o relato de um professor de 62 anos que se apaixona por uma aluna de 24. Estimulado por esta paixão, o personagem reflete sobre a tragédia de envelhecer e as obsessões sexuais de todos nós. E sobre como é inútil tentar mudar a natureza humana. Em dado momento, ele comenta: "É a velha história americana: salvar os jovens do sexo. Só que é sempre tarde demais. Tarde demais, porque eles já nasceram".

Sublinho uma, sublinho duas vezes, quase perfuro a página com a caneta, por que é isso aí: é sempre tarde demais para nos salvar, já estamos aqui, a vida está em curso, já nos apegamos aos nossos privadíssimos traumas, medos, fantasias, estamos irremediavelmente condenados a ser quem somos. Podemos, claro, amadurecer, ficar mais leves, lidar com nossas fraquezas com mais bom humor, mas suprimi-las para sempre? Sem chance. No máximo, trocamos alguns problemas por outros.

Quando a questão é sexo, então, salvar-nos do quê? Só mesmo nos impedindo de nascer para evitar que tenhamos contato com o que há de mais fabuloso e enigmático em nós: nosso desejo. Uma vez nascidos, tarde demais. Estamos em pleno poder dos nossos cinco sentidos, impossível evitar que nossos olhos vejam outros corpos, nossos narizes sintam outros cheiros, nossas mãos toquem em outras pessoas e que sintamos o gosto delas e ouçamos o que elas têm a nos dizer. Tudo isso provoca um curto-circuito. Até pode-se exercer a abstinência como escolha, mas nunca através de uma imposição externa, de uma pregação moralista. Tentar nos manter afastados do sexo? Só se a intenção for a de nos transformar em pervertidos.

Tarde demais, nascemos.

E uma vez nascidos, viramos homens e mulheres que tentam extrair alegrias de onde só brota dificuldade, que participam deste carnaval de sensações fartamente oferecidas dia após dia: paixões e melancolias ao nosso dispor, bastando estarmos predispostos à vida. Uma vez nascidos, temos uma cara, um corpo e a nossa alma, principalmente a alma, nosso DNA espiritual, avesso a manipulações de qualquer espécie. Tentem, mas vai ser difícil nos transformar em pedra, parede, concreto.

Podem fazer nossa cabeça, mudar nossas idéias, nos arregimentar para o seu partido. Influenciar, podem. Somos maleáveis. Mas arrancar de nós a humanidade, proibir que tenhamos sono, fome e sede, declarar-nos incapacitados para o amor, exigir que nunca mais sonhemos, que não cultivemos nosso lado mais secreto e selvagem, impossível, só se não existíssemos.

Tarde demais, nascemos.
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martha.medeiros@zerohora.com.br

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